ROUSSEAU JEAN-JACQUES
capítulo II
Das primeiras sociedades
A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família; ainda assim só se prendem os filhos ao pai enquanto dele necessitam para a própria conservação. Desde que tal necessidade cessa, desfaz-se o liame natural. Os filhos, isentos da obediência que devem ao pai, e este, isento dos cuidados que deve aos filhos, voltam todos a ser igualmente independentes. Se continuam unidos, já não é natural, mas voluntariamente, e a própria família só se mantém por convenção.
Essa liberdade comum é uma consequência da natureza do homem. Sua primeira lei consiste em zelar pela própria conservação, seus primeiros cuidados são aqueles que se deve a si mesmo, e, assim que alcança a idade da razão, sendo o único juiz dos meios adequados para conservar-se, torna-se, por isso, senhor de si.
A família é, pois, se assim se quiser, o primeiro modelo das sociedades políticas: o chefe é a imagem do pai; o povo, a dos filhos, e todos, tendo nascido iguais e livres, só alienam sua liberdade em proveito próprio. A diferença toda está em que, na família, o amor do pai pelos filhos o paga pelos cuidados que lhes dispensa, enquanto no Estado o prazer de mandar substitui tal amor, que o chefe não dedica a seus povos.
Grotius nega que todo o poder humano se estabeleça em favor daqueles que são governados: cita, como exemplo, a escravidão. Sua maneira mais comum de raciocinar é sempre estabelecer o direito pelo fato. Poder-se-ia recorrer a método mais consequente, não, porém, mais favorável aos tiranos.
Resta, pois, em dúvida, segundo Grotius, se o gênero humano pertence a uma centena de homens ou se esses cem homens pertencem ao gênero humano. No decorrer de todo o seu livro parece inclinar-se pela primeira suposição, sendo essa também a opinião de Hobbes. Vemos assim, a espécie humana dividida como manadas de gado, tendo cada uma seu chefe, que a guarda para devorá-la.
Assim como um pastor é de natureza superior à de seu rebanho, os pastoresde homens, que são os chefes, também possuem natureza superior à de seus povos. Desse modo - segundo Filo - raciocinava o imperador Calígula, chegando, por essa analogia, à fácil conclusão de que os reis eram deuses, ou os povos, animais.
O raciocínio de Calígula leva ao de Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles, antes de todos eles, também dissera que os homens em absoluto não são naturalmente iguais, mas nascem uns destinados à escravidão e outros à dominação.
Aristóteles tinha razão, mas tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido na escravidão, nasce para ela; nada mais certo. Os escravos tudo perdem sob seus grilhões, até o desejo de escapar deles; amam o cativeiro como os companheiros de Ulisses amavam o seu embrutecimento. Se há, pois, escravos pela natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força fez os primeiros escravos, sua covardia os perpetuou.
Nada disse do rei Adão, nem do imperador Noé, pai dos três grandes monarcas que dividiram entre si o universo, como o fizeram os filhos de Saturno, que muitos julgaram reconhecer neles. Espero que apreciem minha moderação, pois, descendendo diretamente de um desses príncipes, e talvez do ramo mais velho, quem sabe se não chegaria, depois da verificação dos títulos, à conclusão de ser eu o legítimo rei do gênero humano? Seja como for, não se pode deixar de concordar quanto a ter sido Adão o soberano do mundo, como o foi Robinson em sua ilha, por isso que era único habitante da terra, e o que havia de cômodo nesse império era o monarca, firme em seu trono, não temer rebeliões, guerras ou conspiradores.